A maior preocupacao do menino José* no momento é o conserto da televisao do orfanato onde vive, em Nampula, Mocambique. A televisao esta quebrada ha quase um ano, mesmo periodo em que José recebe tratamento com antiretrovirais. O tempo, no entanto, nao parece uma barreira. Ele proprio se confunde ao indicar a sua idade. Suas respostas variam de cinco a dez anos. A diretora do orfanato, dona Cinira, como é conhecida, diz que José tem 12 anos, mas tem duvidas sobre a veracidade da informacao. O que é certo é que José é seropositivo desde seu nascimento.
Ha cinco anos ele vive no orfanato, que tem capacidade para 30 meninos. “As meninas orfas tem mais facilidade em conseguir moradia. Elas ajudam membros da familia com servicos domesticos, como buscar e carregar agua dos poços ate as casas, cozinhar e tomar conta de outras criancas menores. Assim acabam sendo mais aceitas que os meninos”, diz dona Cinira.
José, no entanto, sofreu a saga de tantos outros orfaos que vivem em Mocambique: rejeicao e estigma. Segundo os ultimos dados da Onusida, referentes ao ano de 2003, 470 mil criancas mocambicanas perderam pelo menos um de seus pais em decorrencia de Sida. Como José existem hoje mais de 90 mil criancas seropositivas em Mocambique. Seu tio, que é seu familiar mais proximo ainda vivo, mora ha cerca de oito quilometros do orfanato, em um dos bairros mais pobres da cidade. A casa nao tem energia eletrica nem agua corrente. Ele entregou o menino ao orfanato sob a alegacao de nao ter dinheiro para alimenta-lo. No entanto, tem duas mulheres, segundo Arnaldo, de 22 anos, que vivia no orfanato quando José foi morar la. “Ele chegou aqui muito fraco, mal conseguia andar”, conta Arnaldo, que nao sabe se tem algum membro da familia ainda vivo. Arnaldo foi deixado em um orfanato quando era muito pequeno – nao lembra a idade certa – durante a guerra civil que assolou o país por 16 anos, encerrada em 1992 com um acordo de paz entre o governo e a Renamo, hoje principal partido de oposicao mocambicano. Depois do fim da guerra, Arnaldo tentou todos os esforcos para encontrar a familia, desde anuncios na radio a divulgacao boca-a-boca. Nunca teve sucesso.
Ele é um dos poucos jovens do “centro”, como as criancas se referem ao orfanato, que sabem que José tem HIV/Sida. “José é doente, mas é uma crianca como outra qualquer. A unica diferenca é que ele precisa de alguns cuidados especiais”, diz Arnaldo, referindo-se ao tratamento com antiretrovirais.
Vitima mais do estigma que o HIV/Sida carrega do que da propria doenca em si, José luta a cada dia pela vida sem saber. Adora ir ao hospital porque é uma oportunidade de passear de carro. Esta na quarta classe e agora comecou a ter mais confianca em escrever e a ler. Estuda em uma escola a menos de cinco minutos a pe do orfanato. Por isso, é um dos primeiros a chegar para o almoco. “Hoje comi arroz e feijao. Quero muito comer carne”, diz ele, em uma tentativa de sensibilizar a reportagem para alcancar seu objetivo.
Segundo dona Cinira, ele sabe que é doente porque tem de tomar remedio diariamente, um comprimido pela manha e outro a noite. Mas a vitalidade que José carrega dentro de si faz a propria diretora se confundir. “Ele sabe que é doente, mas nao esta doente”, diz ela. “Apesar de estar em tratamento, José faz as mesmas coisas que as outras criancas do orfanato”, afirma. No ultimo ano, com o tratamento antiretroviral, José ganhou peso e altura, diz dona Cinira.
Foi no orfanato que José teve suas primeiras experiencias de integracao na sociedade. A voluntaria hungara Sarolta Banyia, de 23 anos, que trabalhou ali durante seis meses, diz que a evolucao de José é visível. “Antes ele nem conhecia a palavra ´carinho´e muito menos seu significado. Sempre se confundia com ´carrinho´”, diz ela. Agora, alem de carinhoso, José é tambem carismatico. Tem varios amigos no orfanato e na escola.
Ele tem ainda um pouco de dificuldade para andar. Uma de suas pernas parece ser maior do que a outra, o que o faz cambalear de um lado para outro quando se movimenta. A barriga grande, cheia de vermes, é motivo de orgulho para José. “Ele é pequeno mas come como ´big´”, diz seu amigo Augusto, de 11 anos. Segundo o professor de desenvolvimento da Universidade de East Anglia, em Norwich, Inglaterra, Mark Harrison, a sociedade é que torna uma pessoa deficiente. “A exclusao parte de fora para dentro e a pessoa acaba por internaliza-la. Quando o caso é o reverso, a inclusao e a consequente integracao acontecem naturalmente”, diz.
José foi ganhando seu espaco aos poucos. “Os outros meninos sabem que ele esta em tratamento, mas so os mais velhos sabem que doenca ele tem”, diz dona Cinira. José tem algumas regalias, como tomar leite e comer ovo em dia de peixe, alimento que ele nao gosta. Mas a sintonia entre as criancas supera qualquer tipo de preconceito ou ciumes. Os meninos sabem que José é um garoto especial. Nao é a toa que lhe dao prioridade para conversar com a reportagem por telefone. E ciente de seu poder de persuassao, José nao perde tempo: “precisamos de uma televisao”, diz. Afinal, ele é tao curioso pela vida como qualquer telespectador de telenovela.
*Os nomes dos entrevistados foram trocados para preservar sua identidade
**Esta matéria foi escrita por mim há um ano. Nunca foi publicada
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