Ainda me lembro da primeira vez que vi Cebola. Foi no começo de outubro de 2003, quando alguns alunos da escola onde eu dava aula de inglês e de cidadania, em Beira, Moçambique, me chamaram para assistir ao ensaio de dança típica. Fui para uma sala abafada como todas as outras, com uma janela mais estreita do que comprida, que permitia passar apenas um facho de luz. Era de manhã. Devia ser umas 10h, por aí. O sol ardia lá fora. Lá dentro, calor e sombra. Sentei em um banquinho de madeira. Logo comecei a ouvir as batidas dos tambores e, a seguir, os dançarinos, crianças da escola, começaram a entrar pela porta da frente. Eram umas oito crianças. Os maiores entraram na frente, dançando, com aquela malemolência africana, as calças coloridas das capulanas, os peitos descobertos, pés no chão. Foi então que eu vi um menininho desengonçado entrando ao som dos tambores. Compenetrado, atento à música, marcando cada passo com determinação. Ele exibia um sorriso de canto de boca ao mesmo tempo em que franzia um pouco sua testa, apertando uma sobrancelha contra a outra. Essa é a mesma carinha que até hoje Cebola faz quando está pensativo. Tanto o carismo quanto o sorriso de canto de lábio ele também carrega até hoje.
Acho incrível como Cebola cativa as pessoas. Naquele dia, havia pelo menos mais sete crianças dançando, mas foi em Cebola que eu me concentrei. Simplesmente porque ele é especial. E dá para perceber isso na primeira olhada.
Nesse dia pude, sim, comprovar que existe amor à primeira vista. De lá para cá, Cebola entrou na minha vida e eu entrei na dele. Ele continua Cebola pra mim, eu virei "teacher" pra ele. Passaram-se quase seis anos daquele dia até maio deste ano, quando voltei a Moçambique para passar férias. Desde dezembro de 2004 que eu não via Cebola. Nos falamos quase que mensalmente, quando ligo para o orfanato onde ele mora. O nosso reencontro foi emocionante e merece um outro post. Hoje eu vou deixar aqui a foto da última vez que o vi, no fim de maio, meu último dia em Moçambique antes de voltar para o Brasil.
Eu passei no orfanato para me despedir das crianças. Cheguei lá por volta de umas 8h30-9h. Sabia que Cebola ia para a escola às 11h e, por isso, queria passar um tempo com ele antes da aula, já que meu voo saía às 13h. Chego lá, conversamos, nos abraçamos, acompanhei ele e as crianças a matabicharem (tomar café-da-manhã) com chá e pão (com pão). Depois a diretora do orfanato chegou e perguntou se Cebola havia lavado sua roupa. Ele disse que não e que ia fazer isso naquele instante. E fez. Cebola não tem muita roupa. Eram três camisetas e uma calça jeans. Ele ficou apenas com uma bermuda, que era a que estava vestindo. Falei para ele: "tem que terminar logo. Daí eu te levo na escola e depois vou para o aeroporto". Eis que Cebola me responde: "Teacher, eu não vou para a escola hoje. Lavei toda a minha roupa e não tenho como ir." Eu já não sabia se ria ou se chorava. Claro que ri, olhando para ele com cara de interrogação. Ele me olhou de volta, de canto de olho, com aquela carinha que ele sempre faz quando fica com uma mistura de vergonha e de safadinho. "Mas, Cebola, não dá para faltar à aula. Tem alguém para te emprestar uma roupa?", pergunto. "Vou esperar alguém chegar da aula para pegar a roupa". E aqui embaixo ele está - vestido para a aula, arrumando o material. E, acima de tudo, está maningue feliz.
Saí do orfanato com ele e fomos à pé em direção à pousada onde eu estava hospedada para pegar minhas coisas. Não resisti e paramos em um quiosque para tomar um refresco (refrigerante). Afinal, esse era nosso momento único. Ele não largava minha mão. Nem eu a dele. Tiramos várias fotos, demos risadas. No fim, eu dei a ele minha sandália havaiana, já que ele estava descalço e só tem um sapato, que é uma sapatilha (tênis) que usa em momentos especiais, como festas, para ir à Igreja e etc. "Não faz mal que é de mulher?", perguntei. "Não, teacher", respondeu Cebola. Subimos em um táxi e eu o deixei na escola e segui para o aeroporto. Ainda me lembro do carro partindo, da gente retribuindo os acenos e os sinais de beijos. Cebola deu de novo aquele sorriso, que do canto de lábio, encheu toda sua boca. Ele sabe que a teacher há de voltar! (Ah, meus olhos se encheram de lágrimas, claro, mas isso já nem é notícia)
Abaixo, as novas sandálias de Cebola:
Hora de lavar roupa:
quarta-feira, 6 de janeiro de 2010
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10 comentários:
Mirella, mais uma vez você me fez chorar. Não apenas pela história, mas pela maneira como conta e sabe detalhar cada fato e nos emocionar de um jeito muito simples e especial. Acompanhando sua história, fico pensando no Cebola e em como eu também gostaria de conhecê-lo. Você dá vida às palavras e onde ela é rara: na África ! Parabéns. Te admiro demais !
bjo
Surpreendente como nossos olhares falam por nós e nos fazem entender o que os olhos dos outros nos falam.
Sua história com o Cebola e com a África revela para nós belezas inimagináveis que estão do outro lado do Atlântico, um pouco além do horizonte. Tenho pensado que deveria se dedicar às crônicas, Mi. Beijo, Rafa.
Jéssica, fui eu que chorei agora ao ler seu comentário. Ainda vou te levar conhecer o Cebolinha.
Rafa, os olhos e os olhares falam muito mesmo e nosso olhar sobre as coisas também.
Beijão pros dois.
Prima, não tenho nem palavras para expressar a admiração que tenho por você... Nos dois sentidos: Como ser humano e como profissional... Toda essa sua história com a África e com o Cebola demonstram que você tem um coração maior que você!! E quando consegue transformar essa linda história em texto e nos emocionar, demonstra a excelente profissional que és... Parabéns por tudo e saiba que eu amo muito você!!
Super beijo,
K.
......ai Mi, já estava emocionada ao ler sua última postagem e pensando:" minha filha é de-mais!!!é mesmo " um amor sem fronteiras este seu com o Cebola e com a MAMA Áfria.....agora então lendo as postagens da Jéssica, Rafa, Camila,vejo que não é apenas corujisse minha....parabéns, tenho muito orgulho desta sua força, coragem, determinação......Bjão e maravilhoso 2010 a vc e é claro aos meus netinhos e amigos de lá da África.Mã
K, eu acho que antes de profissional, o importante é ser humana. Isso se reflete nas coisas que a gente faz, como nos textos que escrevemos. Toda essa história com o Cebola (ele é minha representação da infância moçambicana, você sabe disso) resgata o que há de mais humano em mim e me faz sonhar, acreditar, fazer. Agora você entende porque quero levar o João pra lá, né!
Mã, você é coruja, mas como eu também sou sua puxa-saco, tudo bem, estamos em casa! rs... Agora resta saber quando você vai conhecer seus netinhos africanos. Estou a esperar, tás a ver!
kandandos, Mi
nem sei por onde começar... quando vejo que a humanidade acabou, que todos nós nos tornamos mercadoria e minha alma se esvazia, me deparo como uma história assim: singela, descomprometida, apenas sendo verdadeira e humana. Sem aquele olhar de colonizador sobre colonizado... sobre o rico e o pobre... mas sobre amor entre seres, seres humanos que se amam e trocam experiências tocantes entre si mas que ao mesmo tempo vivem em realidades tão distantes.
Queria eu ter um Cebola na minha vida, melhor dizendo queria eu ser o Cebola de alguém.
Quando penso que a humanidade acabou, me supreendo, ela existe; não nas telas dos computadores e na falsa idéia que podemos viver em harmonia com a natureza que na realidade nos destrói assim como a gente destrói a mesma - mas no amor humano que nos une e nos faça uma única raça - a raça humana.
Obrigado Mirella por você mais uma vez me dar um frescor do que é a vida!
Ri, que lindo! Fico lisonjeada que esse meu texto tenha te despertado todo esse frescor do que é a vida. A vida é pra viver, né! Acho que essas experiências alimentam a alma e demonstram que ainda vale a pena, ainda há esperança. Essas trocas são essenciais.
Um beijo do tamanho da África. Saudades!
Oi Mirella, uso as palavras de todos estes que aqui se emocionaram com seu sentimento escrito,sua entrega a uma coraçao em forma de menino. Simples, suave, intensa. Obrigado por compartilhar.
Adriano Gambarini
olá Mirella....andava simplesmente a procurar fotos de África e encontrei este blog...quando leio estes textos fico arrepiada e com uma lágrima no canto do olho..mirella este blog é lindo
a sua maneira de escrever deixa-me encantada, fascinada
tanta paixão, tanto amor por este continente..eu sou de portugal mas o meu sonho sempre foi ir a África, conhecer cada recanto e cada cultura; aprender muito mais do que aquilo que aprendo aqui
ser muito mais feliz do que sou hoje em dia
e estas fotos, estas 'confissões' que faz, deixam-me a sonhar
esta história em especial tocou-me, fez-me chorar...Mirella um dia ainda vou ser como voçe
muitas felicidades, um abraço do tamanho do mundo e continue a ser como é
admiro-te!
p.s. está nos meus favoritos xD
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